Nos últimos tempos, Milton Gonçalves já cumprimentou mais gente do que candidato a prefeito. "Não há um dia em que eu saia e as pessoas não venham me abordar", confirma o ator, feliz com o reconhecimento. Na pele do antiético deputado Romildo Rosa, de A Favorita, ele sempre ouve em tom de brincadeira "olha o corrupto" ao caminhar pelo Flamengo, bairro do Rio onde mora.
Mas além de conquistar reconhecimento com o papel na novela das oito da Globo, Milton também vê seu personagem gerar polêmica. Políticos e até integrantes de movimentos negros chegaram a dizer que Romildo Rosa poderia prejudicar candidatos negros nas eleições e até o senador Barack Obama, que vai disputar a presidência dos Estados Unidos. "É uma sandice", rebate o ator.
Ativo na luta pela integração dos atores negros na TV, Milton defende que seu trabalho na novela de João Emanuel Carneiro não muda a cabeça de ninguém e muito menos prejudica os negros. "Eu quero é um bom personagem. Já fiz outros vilões horrorosos e ninguém questionou", diz.
O povo brasileiro é considerado apático em relação à corrupção política do País. Essa indolência se estende à postura de seu personagem em A Favorita? Como sente a resposta das pessoas nas ruas?
As pessoas não acham comum o que meu personagem Romildo Rosa faz e o condenam. É claro que às vezes rindo, mas condenam. Tenho a pretensão de, por meio desse trabalho, poder alertar as pessoas que vão votar este ano nas eleições municipais. Não sou o anjo que vem trazer a verdade. Mas acho que a presença dessa figura na novela serve de aviso para muita gente pensar duas vezes antes de votar.
Que tipo de manifestação você já enfrentou desde que começou a interpretar o Romildo Rosa?
A reação do público é muito boa em relação a mim. Apelidaram de vez o meu personagem de corrupto, apesar de até o momento nada ter sido comprovado contra ele na história. Nas ruas, as pessoas brincam: "olha o corrupto". Umas em tom de brincadeira, e outras na intenção de mexer comigo mesmo. Mas não me incomodo com isso. Moro na zona Sul do Rio de Janeiro e vou a todos os lugares. Não tem um dia em que pelo menos umas 10 pessoas não se aproximem de mim. Todos dizem que estou muito bem nesse papel. Fico feliz, obviamente, porque em um trabalho como esse a gente coloca os demônios para fora. Tenho a chance de usar todas as maldades que tenho no baú. Todo mundo tem seu baú de controvérsias. As pessoas se interessam e querem ver. A repercussão é grande.
A repercussão é tanta que chegaram a insinuar que o seu personagem prejudicaria candidatos nas eleições. Como você avalia isso?
O que já foi dito por aí em relação a isso não tem nexo. Dizer que a presença de um personagem negro, político e vilão, no Brasil, atrapalharia a eleição de Barack Obama nos Estados Unidos é uma tremenda sandice. Pior ainda é dizer que a presença de meu personagem em uma novela atrapalharia os candidatos negros que concorrem nas próximas eleições aqui no Brasil. Isso é uma loucura inexplicável. Porque, se um personagem da ficção atrapalhar a candidatura de alguém, é sinal de que o candidato é ruim mesmo. Novela é novela. Dura nove meses. A TV tem força, mas não modifica. Só cria modismos. Não muda o caráter e nem a história das pessoas. Recebi uma carta de um deputado de São Paulo dizendo que eu estava fazendo um deserviço. É o contrário. Faço um serviço e já respondi a ele.
Você também foi questionado por integrantes de movimentos negros pelo fato de ter aceitado viver esse papel, sendo que sempre defendeu a boa imagem dos atores negros na televisão...
O que eu quero é fazer um bom personagem. Já interpretei outros vilões e figuras horrorosas. Um dos trabalhos que mais me deu prêmios foi um filme chamado A Rainha Diaba, em 1974. Eu era homossexual e chefe de uma quadrilha de traficantes. Ninguém falou nada. Sabe por quê? Porque o negro está associado ao mal quando ele ocupa o lugar dele na sociedade. Pode ser bandido e batedor de carteira que ninguém escreve carta. Mas se fotografarmos o Congresso, o Senado, os Ministérios, não vemos representantes negros. Não é um personagem que aparece esporadicamente na teledramaturgia que atrapalha. O que atrapalha é a falta de visão, a falta de estudar melhor a História do Brasil.
Você já interpretou diversos personagens que vão além do escravo e do empregado doméstico, papéis comumente destinados a atores negros. É verdade que teve de pedir para fazer o primeiro engravatado de sua carreira na TV?
Pedi ao Dias Gomes, mas ele revezava com a Janete Clair e passou para ela essa missão. Janete me deu o maravilhoso Dr. Percival, um médico, em Pecado Capital. Eu cuidava da personagem de Débora Duarte na história e até brincava que era o preto velho que baixava quando ela estava com problemas espirituais. Eu tinha uma história no teatro que nem todos conheciam. Quando fui para a televisão, muitos achavam que eu era um aventureiro que vinha da figuração. Havia um tratamento meio desrespeitoso. Mas minha postura sempre foi a de ir onde está a fera, onde reside o preconceito. Já enfrentei situações bem preconceituosas.
Quais, por exemplo?
Em Pecado Capital, a personagem de Tereza Amayo era casada com o personagem do Dary Reis. Mas pintou um romance com o meu personagem e começaram a chover cartas na Globo. As correspondências não criticavam só o fato dela ter uma relação extraconjugal, mas o problema era ser com um negro. Quer dizer que se eu fosse branco e de olhos azuis não teria problema? Depois fiz outra novela, Baila Comigo, do Manoel Carlos, em 1981. Era casado com a Beatriz Lira na história, mas havia cobranças de que não nos beijávamos. Tivemos uma conversa, já tinham insinuado que não nos beijávamos pelo fato de eu ser negro e começamos a beijar muito na boca. Minha mulher até ficou com um certo ciúmes (risos). Mas escreveu uma carta na época dizendo que gostaria de me ver beijando a Maitê Proença. Mas essa não é minha preocupação. Já fui marido de muitas mulheres negras também. Só quero que nós negros sejamos vistos como parte integrante e não como diferentes.
Acha que essa sua luta pela inserção dos atores negros já deu bons resultados?
Eu tenho longevidade. Sou do primeiro elenco da Globo formado por Otávio Graça Melo em 1965. Mas não brigo só por um espaço para mim. Mesmo que você juntar todas as emissoras, vai contar com facilidade quantos negros há trabalhando. Sobrevivo dessa profissão, tenho um bom apartamento, meus filhos já moraram fora, viajei mais do que imaginei que poderia e gosto de tomar um bom vinho. Mas até hoje tenho posições marcadas na Globo. Estou lá e se achar que alguma coisa não é justa, vou lá e falo. Minha preocupação é a inserção sem humilhação.
Você se sente realizado com os personagens que pôde viver até aqui?
É muito raro eu não gostar de um personagem que faço, seja ele grande ou pequeno. Tenho carinho especial por muitos trabalhos e sou feliz por isso. Adorei O Bem-Amado e sempre fico emocionado ao lembrar de Mário Lago narrando o final de meu personagem Zelão das Asas. A realização de qualquer homem é se despregar de sua realidade e sonhar em voar. A reação das pessoas era maravilhosa. Não sei se entenderam, porque o Dias Gomes era muito irônico. Mas foi bonito para todo mundo. Também adorei Irmãos Coragem, porque eu fazia o Brás Canoeiro e dirigia a novela ao mesmo tempo. Terminei supercansado. E entre tantos outros no cinema, no teatro e na TV, o Romildo Rosa também está me deixando muito feliz.
Cheio de histórias
Mineiro de Monte Santo de Minas, Milton Gonçalves cresceu e foi criado em São Paulo. Foi lá que tomou gosto pelo teatro amador. Mas não demorou muito tempo para se profissionalizar.
A famosa companhia do Teatro de Arena precisava de um ator negro para a peça Ratos e Homens e foi assim que Milton começou. "Estava ao lado do Gianfrancesco Guarniei, Flávio Migliaccio, não era um grupo qualquer", valoriza Milton.
Na década de 60, Milton iniciou sua carreira televisiva, atuando em novelas como A Moreninha e A Cabana do Pai Tomás. Não se limitou a atuar, mas também participou de inúmeras produções como diretor.
"Escrava Isaura, a novela brasileira mais vista no exterior, foi dirigida por mim", ressalta Milton, que diz não ter desistido de voltar a dirigir na TV, apesar de estar afastado.
No decorrer da carreira, o ator também se destacou no cinema, ao participar inclusive de produções americanas e italianas. Com um currículo recheado de trabalhos de destaque e praticamente emendando um trabalho no outro ao longo dos anos, Milton não hesita em destacar que nem tudo são flores no decorrer da caminhada.
"Já vi várias pessoas caírem do navio nessa viagem. Morrem afogados na soberba. Ser ator exige sacrifício", resume.
Com sotaque inglês
Com uma formação teatral, Milton Gonçalves está há bastante tempo longe dos palcos, mas não quer demorar para voltar a fazer espetáculos. Seu projeto para 2009 é fazer uma montagem de Rei Lear, de William Shakespeare.
"Quero misturar atores de diversas raças. Uma filha do rei será branca, outra negra e outra oriental", planeja o ator.
O fascínio de Milton pelo dramaturgo inglês já é antigo. Mas o desejo de montar a peça foi aguçado em uma viagem que o ator fez à Inglaterra. Ao visitar o Royal Shakespeare Theatre, ele gostou de ver expostos alguns cartazes de atores negros que tinham encenado Ofélia e Hamlet, outras obras do autor.
"Quero levar a montagem para vários lugares do País e, quem sabe, para o Royal Shakespeare Theatre."